Um Lugar Chamado Nárnia – Parte V

29.8.12

Escrito por: Renata Ribeiro Arruda (Grupo News)

Um Lugar Chamado Nárnia – Parte V

O dragão que há em nós

Este artigo é o quinto de uma sequência de sete sobre “As Crônicas de Nárnia”.
Um rato falante. Um príncipe recém-coroado. Dois irmãos em férias escolares. Um menino resmungão metido a adulto. Um capitão. E o Peregrino da Alvorada. Os personagens são impressionantes, alguns até já conhecidos. A partir deles, C. S. Lewis descreve mais uma aventura nas terras longínquas de Nárnia.
O primeiro de que falei é Ripchip, o líder dos ratos narnianos. Conhecido por sua hombridade (será isso possível a um rato?) e lealdade, conquistou prestígio no reinado de Caspian. A propósito, como Nárnia é, sobretudo, um lugar mágico, isso explica um garoto conseguir reinar com sabedoria e bom senso. É o poder que alcança os que conhecem o Grande Leão, Aslam. Lúcia e Edmundo retornam ao país de Nárnia sem os irmãos mais velhos, mas acompanhados de outra criança. Trata-se de um primo não muito querido, o Eustáquio. Seu nome é tão interessante quanto sua pessoa. Imagine! Por fim temos o capitão e o navio: lorde Drinian fora o escolhido para comandar o antigo mas reformado Peregrino da Alvorada.
Agora que você já consegue ao menos imaginar os seres que estão reunidos na embarcação, é importante considerar que eles ficarão juntos por muitos dias. Lúcia, Edmundo e o primo indesejado se juntaram à troupe já em mar, o que causou extremo mal-estar ao novato. Eustáquio não compreendia que estava num outro mundo governado por outras regras. Por isso vez ou outra ameaçava comunicar à embaixada inglesa que havia sido sequestrado ou algo assim. Um menino impertinente!
A viagem era na verdade uma busca por sete fidalgos do reinado do pai de Caspian. Eles tinham sido mandados para bem longe durante o governo seguinte, o de Miraz, tio e usurpador, por algum tempo, do trono que pertencia a Caspian. Agora, por uma questão de honra, este iria à busca dos antigos amigos do pai. E o percurso envolvia mares nunca antes navegados. O alvo eram as Ilhas Solitárias. Mas até o destino final, a embarcação passará por diversas ilhas nas quais muitas emoções e aprendizados serão experimentados. No entanto, vou me prender ao episódio de apenas uma dessas ilhas.
Os tripulantes viviam bons momentos em alto-mar quando tiveram de enfrentar doze dias de tempestade. Depois de muita luta contra a correnteza, finalmente chegou a calmaria, e conseguiram ancorar o navio numa ilha com o fim de obter alguma caça, reconstruir barris de água e consertar partes do Peregrino que haviam sido quebradas.
O primo inconveniente, ao perceber que não haveria muito descanso, e por se achar mais digno que outros, numa demonstração acentuada de egoísmo, resolve afastar-se dos demais para dar uma descansadinha. Foi o início de longas noites.
Em geral, um menino mimado não tem noções de sobrevivência em mata fechada, por isso ele acabou sumindo por um bom tempo. Quando perceberam sua ausência, os companheiros formaram grupos de busca, mas não encontraram ao menos um sinal do garoto.
Enquanto isso, Eustáquio foi parar numa caverna, daquelas em que há milhares de joias, mas que você quase não consegue ver, tão escuras são essas cavidades. Era a caverna de um dragão, que momentos antes morrera bem ali na frente do menino medroso.
Fugindo da chuva, Eustáquio foi abrigar-se na caverna. Assim que percebeu estar envolto por joias, começou a imaginar o lucro que poderia tirar disso, e como estava cansado, acabou adormecendo. Ao acordar, levou um susto.
Por dormir sobre o tesouro de um dragão, o garoto, cheio de ganâncias, acabara transformado num monstro semelhante. Uma cilada, do tipo que só acontece em Nárnia! Mas nós acabamos quase comemorando a transformação, pensando algo como: “bem feito”, ou ainda: “ele fez por merecer”. É o que elaboramos o tempo todo a respeito de várias pessoas ao nosso redor. Obviamente nunca sobre nós mesmos. Chegamos até a pensar que Deus poderá fazer isso conosco se não nos comportarmos adequadamente, numa espécie de castigo pelos pecados.
Entretanto esta narração mostra bem o contrário, o cuidado de Deus. Somos em grande parte responsáveis pelo que nos tornamos, e talvez muitos já sejam verdadeiros dragões, soltando fogo pelas narinas, sendo indelicados, gananciosos, além de, como nosso pequeno dragãozinho, julgando-se sempre superiores aos outros.
Ao perceber a mutação que havia sofrido, olhando sua terrível aparência no reflexo das águas do rio, Eustáquio se deu conta de que talvez não fosse tão bonzinho quanto pensava. Vou poupar os detalhes de como ele viveu alguns dias como dragão, partindo para o brilhante desfecho.
Por graça, Eustáquio voltou a ser humano, mas seu caminho foi doloroso, uma vez que havia se tornado uma pessoa quase insuportável. Aconteceu que o próprio Aslam foi encontrá-lo, e ele nem ao menos sabia de quem se tratava, mas teve respeito. Aslam olhou para Eustáquio, e este de alguma maneira captou a mensagem: deveria tirar a roupa. Mas pensou que dragões não se vestem. Entendeu então que deveria arrancar sua pele, uma espécie de escama, como as de cobra, que os dragões possuem. Ele nem desconfiava, porém, que possuía muitas destas peles. Estando Eustáquio na terceira camada, o Leão falou: “eu tiro sua pele”:
"A primeira unhada que me deu foi tão funda que julguei ter atingido o coração. A única coisa que me fazia aguentar era o prazer de sentir que me tirava a pele. É como quem tira um espinho de um lugar dolorido. Dói pra valer, mas é bom ver o espinho sair."
Depois disso, Eustáquio sofreu uma mudança notável. Às vezes tinha alguma recaída, mas a cura em seu caráter, provocada pela ação de Aslam, havia começado.
Quando li esta história pela primeira vez, me identifiquei muito. Pensei no quanto eu precisava me despir das cascas do pecado e do mal. Por outro lado, pensei que isso só é possível quando, após olhar nosso reflexo, descobrimos o dragão que há em nós. E, por fim, que qualquer tentativa de arrancar nossa própria casca é vã. Jesus, ele mesmo, trata de vir nos transformar. Seu “tratamento” talvez lembre as unhas de Aslam entrando fundo em nosso coração. Mas a sensação de limpeza e liberdade valem qualquer dor. E para nós, pecadores de nascença, essa é a melhor solução possível, queira crer!
Ilustração: Pauline Baynes

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